A agroecologia pode ser entendida como uma prática, uma ciência e um movimento social. Enquanto prática, ela aplica princípios ecológicos, tais como o respeito aos ciclos naturais e o uso de recursos locais, ao manejo de agroecossistemas. As agricultoras e os agricultores que praticam agroecologia têm uma relação holística e sistêmica com a natureza, visando harmonizar o funcionamento do agroecossistema através de sua intervenção. As mulheres, nas áreas sob sua responsabilidade, como quintais, pomares, roças e sistemas agroflorestais, também têm como objetivo garantir a alimentação e a saúde de suas famílias através de sua produção. Este papel social atribuído às mulheres resulta em uma produção diversificada (plantas alimentícias e medicinais, criação de animais e produtos processados artesanalmente) e é em grande parte voltada para o autoconsumo. Ele acrescenta uma lógica de cuidado ao manejo dos agroecossistemas. Isso também significa que o trabalho das mulheres na agroecologia é parcialmente não remunerado e, como resultado, ainda em grande parte invisível, contribuindo para a reprodução das discriminações imbricadas de gênero, classe e raça.
Estas técnicas e práticas agroecológicas têm um significado político, que adquire uma nova dimensão diante dos conflitos ambientais, cuja intensidade está aumentando sob o efeito da expansão do capitalismo financeirizado e da mudança climática e ambiental global. A concepção capitalista e mercantil de recursos naturais e serviços ambientais se reflete no avanço de antigas (extrativismo industrial) e relativamente novas (cadeias agroalimentares, economia verde) formas de exploração, que estão penetrando nos territórios onde a agroecologia é praticada. Este encontro gera resistências e mobilizações nas comunidades e bairros que são afetados. Essas resistências e mobilizações tomam a forma de conflitos, mas também da agroecologia como alternativa prática e como projeto político. As mulheres estão particularmente envolvidas nestas imbricações por conta da sua responsabilidade com o cuidado, socialmente atribuído. Elas também são afetadas por diferentes formas de violência que grandes projetos de desenvolvimento podem trazer para o território. O que está em jogo é tanto a defesa dos territórios de vida quanto o reconhecimento social, econômico e político das mulheres. Em alguns casos, os e as habitantes também se beneficiam das oportunidades (renda, projetos de base comunitária…) oferecidas por empresas que exploram o território. Essas múltiplas tendências resultam em relações complexas entre mulheres e homens praticantes da agroecologia e destes com a natureza e com os atores e processos econômicos e políticos do território.
O projeto de pesquisa GENgiBRe “Relação com a natureza e igualdade de gênero. Uma contribuição à teoria crítica a partir de práticas e mobilizações feministas na agroecologia no Brasil” visa compreender a relação que as agricultoras agroecológicas têm com a “natureza” e o papel que esta relação pode desempenhar em seu engajamento em defesa da sua visão de território e contra as discriminações.
O projeto de pesquisa GENgiBRe “Relação com a natureza e igualdade de gênero. Uma contribuição à teoria crítica a partir de práticas e mobilizações feministas na agroecologia no Brasil” visa compreender a relação que as agricultoras agroecológicas têm com a “natureza” e o papel que esta relação pode desempenhar em seu engajamento em defesa da sua visão de território e contra as discriminações. Coloca a hipótese de que esta relação com a natureza é limitada por relações de poder entrelaçadas (de gênero, classe, raça…), ao mesmo tempo em que alimenta o mundo vivido (experiência, percepção da natureza através de trabalho, práticas e técnicas) das mulheres agricultoras agroecológicas. Deste processo, pode, sob certas condições, surgir uma identidade coletiva, assim como práticas e mobilizações em defesa da território e contra as discriminações.
O projeto propõe a realização de uma pesquisa para elucidar estas condições. A pesquisa é de tipo qualitativo e está localizada primeiramente no nível das agricultoras agroecológicas que são nossas interlocutoras. Envolve a realização de entrevistas, visitas, elaboração coletiva de representações gráficas, tais como mapas, diagramas e linhas do tempo. Também serão realizadas entrevistas com homens (maridos, filhos etc) do núcleo familiar das agricultoras.
Em um segundo nível, a pesquisa aborda diferentes espaços políticos estruturados em torno de questões ambientais, que interagem com a agroecologia como um projeto político. Serão entrevistados atores chave como lideranças locais, gestores/as públicos/as no nível municipal, estadual e federal e representantes de grandes projetos de investimento que incidem sobre o território.
O projeto GENgiBRe se enquadra na teoria crítica ou ciência emancipatória: visa produzir conhecimentos que contribuam para as mobilizações sociais, neste caso feministas e agroecológicas, na intersecção entre a universidade, a sociedade civil organizada e os poderes públicos envolvidos neste tipo de transformação social.
A pesquisa se concentrará em duas regiões do Sudeste do Brasil, o Vale do Ribeira (SP) e a Zona da Mata (MG), onde as instituições brasileiras parceiras desse projeto atuam, e que são regiões marcadas pela presença de importantes redes de agroecologia e organizações feministas, bem como de conflitos socioambientais.
Na Zona da Mata o projeto GENgiBRe está sendo executado em parceria com o CTA/ZM e a UFV e prevê o diálogo com movimentos sociais e outras organizações da sociedade civil no âmbito do Polo Agroecológico da Zona da Mata. Deste modo, espera-se construir uma rede de cooperação para a realização da pesquisa e de reflexão sobre os seus resultados, de modo a alimentar as mobilizações no território. Para contemplar a maior diversidade de identidades socioculturais e políticas da região serão envolvidas agricultoras familiares, quilombolas, indígenas, afetadas por grandes projetos de mineração e pela lógica de conservação ambiental, e agricultoras inseridas em sistemas de integração agroalimentar industrial. Deste modo espera-se identificar os anúncios, as denúncias e as invisibilidades que produzem o território da Zona da Mata mineira.
No Vale do Ribeira o projeto se desenvolverá através da atuação da SOF no território, junto às mulheres que compõem a Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras (RAMA) de Barra do Turvo, e com as agricultoras agroecológicas do município de Itaóca. Os dois municípios abarcam comunidades, formas de organização e identidades diversas, o que se reflete nas mulheres que participarão da pesquisa: mulheres de bairros da agricultura familiar, quilombolas, afetadas por grandes projetos de mineração e por formas de conservação ambiental. O projeto buscará interlocuções com organizações e movimentos do território que têm um histórico de mobilização pela titulação dos territórios das comunidades tradicionais, contra o impacto de grandes projetos de investimento e por outra forma de preservação ambiental e relação com a natureza.
Em cada região, cerca de 20 mulheres agricultoras serão convidadas a participar do projeto. Dois comitês locais de pesquisa, incluindo duas agricultoras em cada região, também serão formados para discutir os resultados e as direções do projeto à medida em que ele for sendo implementado.
O projeto pretende produzir resultados em vários níveis. Primeiramente, com as mulheres agricultoras e os espaços políticos em que elas participam, através da produção coletiva de conhecimentos (sobre práticas e conhecimentos agroecológicos, papéis de gênero, atores e questões socioambientais no território) que contribuam para suas mobilizações. Além das agricultoras diretamente envolvidas no projeto, os principais resultados serão direcionados à pessoas interessadas na sociedade civil e na gestão pública, na forma de vídeos, boletins ou recomendações políticas, disponíveis em português, francês e inglês.
No nível acadêmico, a originalidade de nossa abordagem está no diálogo entre as ciências sociais, agrárias, ambientais e, em nossa posição, na intersecção da academia com os movimentos sociais. Através desta interdisciplinaridade e posição, pretendemos produzir uma análise situada e matizada que vá além das oposições clássicas sobre a relação das mulheres com a natureza como uma naturalização das dominações sociais ou, ao contrário, como uma fonte de ação. Pretendemos contribuir para uma compreensão precisa das condições de mobilização das mulheres em defesa dos territórios e de sua contribuição para a igualdade de gênero. Os resultados serão divulgados na forma de artigos e publicações em diferentes campos científicos e idiomas; as referências estarão disponíveis no site do projeto.